Informações úteis para reduzir os equívocos sobre o uso do termo “Terrorismo” e a relação dos erros com abordagens decoloniais de Relações Internacionais.

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Informações úteis para reduzir os equívocos sobre o uso do termo “Terrorismo” e a relação dos erros com abordagens decoloniais de Relações Internacionais.

MANUEL HERMETO VASCONCELOS JÚNIOR 

O presente artigo pretende ter uma função utilitária, para uma melhor percepção do conceito de Terrorismo Internacional. Sob essa premissa, tenciona-se que o material não seja tão inovador para o público acadêmico, especializado em Relações Internacionais, pois a ideia é trazer uma formulação básica, junto com uma linha histórica estrita, da trajetória conceitual de terrorismo no mundo contemporâneo, ou seja, busca-se atingir principalmente o público que usa o termo carregado por estereótipos discriminatórios e por abordagens repletas de lugares-comuns. Nesse sentido, o ensaio tenta expor que boa parte dessa definição errônea de terrorismo, utilizada em grandes meios de comunicações internacionais, é fomentadora de discriminação racial e religiosa, bem como incentiva uma xenofobia generalizada, mormente contra a população de orientação islâmica espraiada em diferentes partes do mundo, e parece ter seus fundamentos nas análises decoloniais de relações internacionais.

Esse aspecto discriminatório e xenófobo da definição de terrorismo tem relação direta com a prevalência do pensamento ocidental nas relações internacionais. Segundo a linha de teóricos críticos do colonialismo das relações internacionais, como Edward Said, autor de Orientalismo, a produção acadêmica, a conceituação e a imposição de valores ocidentais nas diferentes partes do globo faz com que os que divergem desse pensamento ou tentam contrapô-lo sejam vistos como o exótico, o outro, o diferente. Essa postura coloca as culturas periféricas (diante do capitalismo ocidental) em uma posição de rivalização, caso não permitam a submissão ou a deferência ao cânone ocidentalizante (Said, 1978, p.5). Esse cenário faz com que as tentativas de ponderação à influência ocidental sejam marginalizadas, o que gera por vezes clamores por mudanças, que vêm até mesmo em formatos extremados como os de grupos terroristas. Contudo isso não faz com que o termo seja construído de modo a creditar suas ações a uma única religião ou a um mesmo conjunto étnico e social, pois o terrorismo é uma modalidade de ação política que remete, no mínimo, à Revolução Francesa (Fase Radical: La Terreur) e é mecanismo social utilizado por diferentes espectros religiosos e étnicos no mundo inteiro. Desse modo, a instrumentalização das ações terroristas para a generalização de área territorial e demográfica extremamente complexa parece servir a interesses políticos das nações ocidentais, em que se reveste um discurso de argumentos soberanistas e de segurança social e alimentar, para camuflar ideários antimigratórios e de eugenia. 

O Terrorismo existe de diferentes maneiras e sua origem é secular. Séculos antes de Cristo, na Judeia, atual estado de Israel, já havia ações terroristas que objetivavam atacar os invasores romanos e os traidores locais que os apoiavam. Nos anos 30 depois de Cristo, os Assassinos, grupo islâmico iraniano, já ocorria os usos de homens suicida à semelhança dos ataques que se vê no século XXI. Mas, apesar das ocorrências na Antiguidade, o vocábulo terrorismo só viria a ser cunhado, segundo os especialistas, no fim da idade Moderna. (BLUMENAU, HANHIMÄKI, 2013, p.2)

Para a maioria dos historiadores, o termo terrorismo teria surgido durante a 2ª fase da Revolução Francesa, de inspiração jacobina, em que o radicalismo prevaleceu nas manifestações políticas em Paris, era a fase de do terror jacobino (1793-94). Já nessas primeiras manifestações, as ações terroristas apresentavam-se como uma tática político-militar com fins ideológicos, geralmente empregada por grupos étnicos, separatistas ou povos em busca de autodeterminação, entre outras modalidades e intenções. Nessas circunstâncias, os envolvidos, em geral, não possuíam um exército regular, por isso precisam utilizar-se de táticas de guerrilha (sabotagem, contra inteligência, atentados) para atingir seus objetivos. Por essa razão, o terrorismo é referenciado, para alguns autores, como a “arma dos fracos”. (Rapoport, 2013, p.283)

Partindo do pressuposto de que o terrorismo tem uma história longa e profunda, deve-se avaliar os motivos das questões que envolvem o tema na atualidade. As causas que levaram as ações terroristas nas diferentes épocas, as reações da comunidade internacional, os tipos de atos terroristas praticados em cada momento, a eficiência das respostas políticas e de segurança, bem como os desafios postos pela temática – todos esses apontamentos são relevantíssimos e demonstram a complexidade de um conjunto de ações sociopolíticas muitas vezes reduzidas a termos simplórios, funcionando muito mais como um catalizador de discriminações do que se prestando a um serviço de inteligência e compreensão acadêmica. Nesse sentido, adotar uma metodologia explicativa e sistêmica da evolução das ações terroristas no decurso histórico pode ajudar a desarmar certos desserviços que as generalidades, muitas vezes manipuladas por interesses escusos decoloniais, provocam no senso comum e nas relações sociais e de segurança entre os povos. (Robbie, 2011, p.2)

No sentido conceitual, o tema do terrorismo moderno fora sistematizado pelo professor David Rapport em quatro ondas, definição bem recepcionada nos meios acadêmicos tradicionais. A primeira Onda seria a anarquista, que se desenvolveu entre 1890 e 1920, como provavelmente a pioneira experiência de terrorismo global sistêmico; seus seguidores defendiam a morte de autoridades e de personalidades empresariais como símbolo de sua ação política. Com esse objetivo, um anarquista russo atira contra um policial em 1897 em São Petersburgo. Acrescente-se, ainda, atentado contra a vida do presidente norte-americano (William McKinley, 1906) e o assassinato do príncipe herdeiro do trono austríaco (Franz Ferdinand, 1914), que também são inseridos como ação radical desse primeiro momento do terrorismo moderno,  segundo Rapport.  Na segunda onda, entre 1920 e 1960, ocorre o que o autor chamou de momento anticolonial, quando diversos povos, principalmente na Ásia e na África, diante do colapso financeiro e geopolítico das grandes potências no pós-guerra, engendram movimentos de autodeterminação. Nessa linha, surgem grupos como o ETA na Espanha, que defende a independência do país basco, ou o IRA, grupo que tem o mesmo intuito na Irlanda. Inserem-se, ainda, nesse contexto, reivindicações pela autonomia da Argélia e do Chipre. Essas movimentações nacionalistas geralmente são acompanhadas de estruturas terroristas que defendem a ação ativa de enfrentamento aos exércitos e as estruturas das potências europeias como o único meio de se tornarem nações independentes. A terceira onda é a esquerdista, que vai da década de 1960 até os anos 1990. Em meio aos primeiros sinais de falência do estado de bem-estar social e dos anos dourados do pós-segunda guerra (representado simbolicamente pelo colapso norte-americano no Vietnã e pelos protestos na França em 1968), movimentos identificados com o marxismo radical são estruturados nos diversos países, sendo que nas nações em desenvolvimento partem, em geral, para a ação armada. É nesse contexto que, diante da instalação de inúmeros regimes militares na América Latina, surgem grupos, inicialmente identificados com a ação armada terrorista, como as FARC (Colômbia), o Sendero Luminoso (Peru), Motoneros (Argentina) ou as guerrilhas ocorridas no Araguaia e na serra Caparaó (Brasil). (Rapoport, 2013, p.283-301)

Verifica-se, conforme a abordagem de Rapoport, que essas ondas terroristas tiveram as mais variadas motivações, indo de abordagens políticas estruturais, passando por anseios de autodeterminação nacional, chegando até a levantes contra regimes ditatoriais. Esse texto não tem a intenção de realizar julgamentos sociológicos ou políticos das incorreções ou acertos dessas modalidades de manifestação humana, contudo entender o conceito de terrorismo e sua origem histórica, bem como sua abrangência, pode auxiliar no enquadramento do atual momento do terrorismo internacional que, como será verificado, pela primeira vez, traz causas fundamentalistas e religiosas como seu mote principal.

A quarta onda terrorista data de 1979 com a Revolução Iraniana, que leva ao poder uma autocracia secular que sustenta o estado sob bases religiosas mulçumanas radicais. Esse ocorrido gera entusiasmo em grupos radicais islâmicos de todo o mundo, que se encontram insatisfeitos com a influência de ideologias religiosas ocidentais em seus países. Nesse sentido, em nome do fundamentalismo religioso, grupos terroristas buscam defender suas ações armadas sob a argumentação extremista de que não haveria outras formas possíveis de culto, o que, em geral, é uma manifestação contra as religiões de base judaico-cristãs, mormente quando os grupos advêm de áreas do Oriente Médio que interpretam alguns ensinamentos do Al Corão sob uma inteligência bem estrita. Essa onda tem outros acontecimentos destacáveis, como a invasão da União Soviética ao Afeganistão (1980), em que grupos de base sunita (diferente da maioria xiita da Revolução no Irã) buscam defender muçulmanos afegão que estariam sendo submetidos ao julgo do ateísmo comunista da URSS; ou a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), em que há o enfrentamento de grupos radicais sunitas e xiitas em nome da supremacia religiosa no Oriente Médio e contra o laicismo. Há, ainda, a Guerra do Golfo, em que grupos como Al-Qaeda, a Irmandade Muçulmana, o Al-Shabab entre outros se insurgem contra a presença ocidental (OTAN) em terras da Arábia Saudita (território sagrado por alocar as cidades de Meca e Medina, onde não é permitida a entrada de não-muçulmanos), para lutarem contra povos muçulmanos (iraquianos que invadiram o Kuwait). Para Rapport, o auge dessa quarta onda é o atentado de 11 de setembro nos EUA, que seria uma espécie de ponto culminante do terrorismo fundamentalista que ascende desde 1979, muito influenciado pela tentativa norte-americana de realizar intervenções sociopolíticas em países do Oriente Médio. (Rapoport, 2013, p.283-301)

Com essa evolução factual que culmina com o atentado das Torres Gêmeas, o terrorismo internacional entra definitivamente na Agenda Global como tema prioritário, principalmente em virtude das reações militares dos EUA no Afeganistão e no Iraque. Essas respostas bélicas, a despeito de serem classificadas por alguns como atos de legítima defesa, tiveram o condão de fortalecer e ramificar grupos fundamentalistas que condenam o laicismo e os modelos ocidentais democráticos como hereges e inadequados para as sociedades muçulmanas: campo fértil para ação armada terrorista. Entre dissidências e subdivisões, além de desentendimentos dentro das próprias milícias terroristas, o grupo que tem mais destaque na atualidade é o Autoproclamado Estado Islâmico (ISIS, DAESH etc), uma vez que possui alianças com diversas facções terroristas que atuam no Oriente Médio, no Chifre da África e nas principais nações do norte, e da costa ocidental africana. Ademais, o ISIS, mesmo que tenha sofrido reveses nos últimos anos, por conta de ações militares da OTAN e de outras forças armadas ocidentais, mantém territórios dominados em diferentes países, tendo vasta capacidade de financiamento, mormente pela facilidade de transações financeiras, que envolvem outros crimes como o tráfico de obras de arte, contrabando de petróleo e tráfico de drogas e armas, em que as rotas da América do Sul parecem ter uma efetiva colaboração, como se verá a seguir. (Garcia, 2017, p.415)

Mapa de ocupação territorial do ISIS no Iraque e na Síria (2016)

Fonte: https://edition.cnn.com/2016/07/11/middleeast/isis-territory-analysis-lister/index.html, consulta em: 16/08/2022

Ainda sobre o ISIS, verifica-se que as principais organizações terroristas do mundo ou foram ou fazem parte de uma rede na qual se submetem à liderança do ISIS. Nesse sentido, destaque para o Boko Haram (grupo fundamentalista que ocupa o norte da Nigéria e subjuga crianças para serem escravizadas sexualmente ou militarmente) – ; para o Al-Shabab (atuação na costa da Somália como pirata de navios petroleiros); e para o Hezbollah (partido político libanês, que possui um braço armado e, por isso, é considerado terrorista por alguns países). Nessa linha, acrescente-se que os grupos citados são fundamentalista sunitas e funcionam como braços do ISIS em determinadas situações, à exceção do Hezbollah. (Cunha, 2009, p.154); (Poletto, 2019. P.220)

Os Dez principais grupos terroristas do mundo e sua ligação com o ISIS (2015)

Fonte: https://www.indiatoday.in/magazine/glossary/story/20151207-10-deadly-terrorist-groups-on-the-planet-820877-2015-11-25, consulta em: 16,08.2022

Como citado, as motivações das ações terroristas são as mais distintas: marginalização econômica, ressentimento social, alienação identitária, privação de direitos, ocupação estrangeira, entre outras razões. Por essa gama de causas, o terrorismo tem sido um problema globalmente difuso, não se vinculando a culturas ou religiões específicas, por conseguinte deve-se considerar uma falácia qualquer referência a uma espécie de “terrorismo religioso islâmico”, que é comumente utilizada, principalmente após os atentados de 11 de setembro nos EUA . Nesse sentido, pode-se citar alguns grupos não-islâmicos que são conhecidos por executarem atividades terroristas em defesa de suas reivindicações fundamentalistas: O Grupo Irgun de terrorismo judeu, que tem histórico de atentados na Palestina e foi responsável confesso pela morte do premiê israelense Itzaq Rabin em 1995; os Tigres Tâmeis, fundamentalismo hindu que atua no Sri Lanka, sendo responsáveis por perseguições a minorias religiosas e pretendem ter uma área autônoma naquela ilha asiática; ação parecida com a do grupo budista 969 de Myamar, conhecido mundialmente pela expulsão da minoria muçulmana rohingya do território birmanês; há também o extremismo cristão de grupos como a Ku Klux Klan, que perseguiam e atentavam contra a vida de negros e imigrantes nos EUA, sob a justificativa e uma superioridade da raça branca, que teria inspiração bíblica. Estes são alguns exemplos dessa realidade fática de que o terrorismo é um conceito de usos de táticas de guerrilhas contra estruturas estatais ou contra o stablishment, muito mais abrangente do que a realidade interpretativa com a qual nos deparamos nas abordagens superficiais tão presentes na contemporaneidade. É nessa linha que os historiadores do século XXI rejeitam a hipótese do “Choque de Civilizações”, defendido no final do século XX por Samuel Huntington. A contra argumentação é a de que o terrorismo não ensejaria o embate civilizacional justamente por ser uma prática secular e ter uma transversalidade étnica e religiosa que não o restringe a conceitos maniqueístas como Ocidente x Oriente, Cristãos x Muçulmanos etc. (BLUMENAU, HANHIMÄKI, 2013, p.10)

Sobre algumas terminologias, é importante destacar alguns pontos. A tradicional e simplista divisão, feita no Ocidente, entre Islamismo Sunita (moderado) e Xiita (Radical) é extremamente equivocada. As divisões sunitas (maior parte dos muçulmanos) e xiitas (predominantemente no Iraque, Azerbaijão, Irã e Bahrein) referem-se a um desacordo quanto à linhagem sanguínea ou não na liderança da igreja islâmica, enquanto os primeiros acreditavam em um califa com vasto conhecimento das escrituras, os xiitas defendiam a hereditariedade com o profeta Maomé (essa cisão ocorreu no século VII e marca os muçulmanos até hoje). Dito isso, não há que se falar em uma instrumentalização radical advinda de uma ou outra vertente, todos os ideários islâmicos têm grupos moderados ou fundamentalistas, sendo que estes defendem, em geral, uma rigidez nas leituras do Alcorão, que impõe hábitos restritivos, mormente para as mulheres e para as relações com outros cultos religiosos. Dessa radicalização é que sairia também os expurgos ao estado laico de modelo ocidental. Destarte, os radicais islâmicos sunitas criaram ideologias fundamentalistas que são denominadas, entre outras, como wahabismo ou salafismo, que defendem uma ortodoxia ultraconservadora que salvaria o mundo islâmico “do contato com os hereges”. Esses preceitos inspiram grupos como a Al-Qaeda, ISIS, Al-Shabab etc. Por isso, é importante ter cautela nas generalizações quando se trata de terrorismo, principalmente por envolver mecanismos nevrálgicos da convivência humana: a religião e a política. (BLUMENAU, HANHIMÄKI, 2013, p.140)

Hodiernamente, uma das dificuldades sociopolíticas e jurídicas sobre terrorismo é a falta de um conceito amplo e multilateral que enquadre as diferentes situações desencadeadas na realidade contemporânea. A falta de uma definição clara faz com que, por vezes atos de terror sejam sancionados por alguns países, seguindo suas conceituações próprias, e entendendo poder fazê-lo dentro e fora de seus imites territoriais. Não que essa prática de enquadramento de atividades ilegais como terroristas sejam novas, ela já deu margem para execuções de chefes de estados em várias partes do mundo, como exemplificado nos atentados desencadeados na segunda onda de Rapoport. (BLUMENAU, HANHIMÄKI, 2013, p.3) No entanto essa manobra gera margem para interpretações discriminatórias que reforçam, na atualidade, as lógicas centro-periferia (Inayatullah, 2004), em que as potências globais podem se achar habilitadas, por seu poderio militar e suas capacidades não-oficiais de serem “polícia do mundo” a usarem conceituações, baseadas em seus interesses internos, para classificar nações e ações como terroristas. Como fora o exemplo da política de segurança dos EUA, no pós-11 de setembro, em que a instituição de terminologias como “Eixo do Mal” ou “Estados Falidos” chancelavam desrespeito às soberanias, aos princípios de não-intervenção e engendravam violações de direitos humanos (Buzan, 2012).  Desse modo, havia uma clara depuração de uma abordagem decolonial, em que a linha abissal do conhecimento supremo do norte global era posta como regra incontestável, sob a argumentação de que a segurança internacional estava em jogo. Destarte, a despreocupação em não definir terrorismo parece um aval velado das potências ocidentais, para que se possa agir de forma livre em temas que envolvem o reforço da subordinação norte-sul que remete aos tempos imperialistas e coloniais. (Dunne, 2013).

Essa volatilidade e permissividade política pode ser confirmada na conceituação apresentada no verbete terrorismo, no dicionário inglês Merriam Webster, que traz “o uso da violência e ameaças de intimidação ou coação, especialmente com propósitos políticos” como a definição prevalecente do vocábulo. Isso exige, mais ainda, a necessidade de uma especificidade, pois essa generalidade tende a interpretações prejudiciais na geopolítica norte-sul, como citado, bem como gera margem para os enquadramentos discriminatórios contra agentes e contra objetivos que envolvem práticas de terrorismo internacional, de acordo com as expectativas e percepções de cada estado nacional.  Dessa maneira aberta, podem-se enquadrar grupos que perfazem protestos legítimos em ambientes democráticos ou gritos por dignidade humana, ou pedidos por proteção à liberdade religiosa ou ideológica podem ser vistos como ações terroristas, conforme a interpretação livre com que as autoridades estatais tenham disponíveis. Ademais, a definição ampla não inclui governos como possíveis cometedores de atos terroristas, nem se cita a construção conceitual “guerra justa” ou “justa causa”, extremamente vagas e usuais quando se trata de terminologias que envolvem terrorismos, servindo aos interesses políticos de última hora do estado envolvido ou à motivações pouco republicanas, em se tratando de estados rivais, diante de uma demanda que envolve segurança ou soberania. (BLUMENAU, HANHIMÄKI, 2013, p.4-5).

Mesmo que houvesse um conceito objetivo sobre terrorismo e esse fosse universalista, a forma da resposta e o nível das sanções contra terroristas continuariam provocando intenso debate e lançariam, mais uma vez, o tema sobre uma controvérsia sociopolítica e jurídica de difícil solução. Diferenciar ações armadas, de grupos intitulados como revolucionários (que se dizem heróis da libertação) de ação militar estatal é uma linha extremamente tênue, diante da conjuntura política dos atores e sociedades envolvidas. (BLUMENAU, HANHIMÄKI, 2013, p.6). O grande problema é que, em muitos casos, essa precariedade interpretativa tende a gerar prejuízo as camadas e grupos que estão mais distanciados das capacidades decisórias, justamente as minorias e grupos marginalizados que fazem suas reivindicações em busca de melhores condições sociais, lançando mão por vezes da ação armada, visto como o único método de responder as capacidades coercitivas do Estado. Sem entrar nos julgamentos morais ou legalistas desse tipo de iniciativa, o fato é que inúmeros especialistas, como Alexander Barder e Amitav Acharya, apontam que as questões étnicas e racistas são preponderantes nos direcionamentos das decisões estatais, mormente nas relações internacionais. Desse modo, em circunstâncias em que há um aparente limbo jurídico conceitual, se os interesses de potências globais estiverem sendo feridos por iniciativas de grupos minoritários, pode ocorrer uma “aceleração” em enquadrar ações violentas como terroristas, a fim de que sejam condenadas pela comunidade internacional e se extinga qualquer legitimidade reivindicada pela minoria envolvida. É o que ocorre, por exemplo, no enquadramento da minoria Rohingya de Myanmar como grupo terrorista, em meio a reivindicação destes por igualdade de direitos, ou a mesma classificação dada a minorias negras do Tigray, na Etiópia, a fim de permitir uma resposta de força armada mais forte por parte do exército etíope. Desse modo, vê-se a questão étnica e de minorias como um fator influenciante em meio a vagueza conceitual de terrorismo. (Barder, 2021); (Amitay, 2022, p.24).

A respeito da posição brasileira nessa conceituação de terrorismo e de organizações terroristas, o Brasil defende as regras das organizações multilaterais universais, até por princípio constitucional, ou seja, organizações terroristas são aquelas que o Conselho de Segurança da ONU (CSNU) classifica como tais. Não há que se falar, no ordenamento jurídico brasileiro, em nomeações unilaterais, feitas pelos estados nacionais, para designar certo grupo sociopolítico ou religioso como terrorista. Nesse sentido, atualmente, o CSNU reconhece a Al-Qaeda, o Talibã, o Autoproclamado Estado Islâmico e a Al-Nusra como organizações terroristas e, por conseguinte, o Brasil também o faz. (Cunha, 2013, p.155). Desse modo, classificar grupos como o PCC, as FARC ou o Comando Vermelho como terroristas ferem diretamente os ditames do direito internacional e da política externa defendida pelo Brasil. Assim, a preocupação com a terminologia é prática salutar para os que pretendem tratar sobre o tema, mesmo que de forma superficial. Adicione-se que não se está relativizando determinadas ações de organizações criminosas brasileiras que se assemelham, por vezes, com práticas de grupos terroristas internacionais, como o saqueamento de cidades, a sabotagem em obras de engenharia, o incêndio de transportes públicos etc. Contudo, essas atividades não passam de ações com caráter terrorista, não suficientes para classificar, de forma exata na nomenclatura, essas organizações como tais. (Silva, 2013).  Nesse sentido, vale lembrar a definição de terrorismo trazida no art 2º da Lei Antiterrorismo brasileira de 2016: “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública” (Brasil, 2016). As razões referenciadas no caput da lei se coadunam com a inteligência do direito internacional sobre o tema, a de que as motivações desse crime devem ser relacionadas à contestação que envolve as estruturas basilares da sociopolítica do Estado, só assim seria possível, ao Brasil, classificar uma organização ou mesmo um ato como terrorista, além disso, por sua prática internacional, a decisão provavelmente fosse submetida posteriormente ao aval do CSNU. (Cunha, 2009, p.148)

Diante dessas construções teóricas e de conceitos mal aplicados que alienam a opinião pública ocidental, torna-se evidente que a Linha Abissal decolonial prevalece na contemporaneidade das Relações Internacionais. Com a manipulação dos meios e das produções acadêmicas, de modo a prevalecer teorias maniqueístas que colocam o mundo sob uma lógica centro-periferia secular, as produções textuais de nações de fora do Norte Global, que tratariam de realidades diferentes e trariam uma amplitude de visão para a interpretação intelectual do mundo, acabam por não acessar o mainstream ou mesmo se escasseiam, diante da dificuldade de serem produzidas e aceitas. (Buzan, 2004). Esse quadro provoca uma inexistência de contrapontos e uma restrição dos debates nas Relações Internacionais, o que gera uma prevalência dos conceitos ocidentais dominantes, que, por vezes, estão travestidos de interesse político dos Estados-Nação, e são contemporizados como ferramenta geopolítica de projeção de poder e de influência. (Dunne, 2013). Nessa linha, a generalização simplista do conceito e dos atores do terrorismo internacional serve a ideários que perfazem as lógicas coloniais do século XIV, ou imperialistas dos séculos XIX e XX. Contudo, nos anos mais recentes, vem-se utilizando de ferramentas mais sofisticadas, como a produção de conteúdos massificantes nas estruturas de mídia, ou criando-se produções acadêmicas que restringem as abordagens teóricas e factuais às situações ocidentais, como se só estas fossem influenciantes para a compreensão do sistema internacional. (Shilliam, 2011)

Sob essas perspectivas, é relevante amplificar a visão do conceito de terrorismo internacional perante as generalizações alienantes que ratificam discriminações e rivalizações entre países no mundo inteiro. A origem histórica do conceito de terrorismo, a presença do mesmo em diferentes lógicas sociopolíticas, principalmente a partir do século XIX demonstram isso. Como demosntrou David Rapoport, através da divisão do tema em  quatro ondas, nas quais o extremismo islâmico encaixa-se na mais recente e seria uma das modalidades em atuação perante tantas outras, o que já mostra a abordagem equivocada do conceito discriminatório, feita até mesmo por meios acadêmicos.

Adicione-se que as lógicas extremistas existentes nas diferentes religiões de massa no mundo, com destaque para os grupos fundamentalistas que professam tanto a fé islâmica sunita, quanto à xiita, de modo a mitigar as apressadas interpretações de que o extremismo se limitaria ao xiismo, o que parece mais ser uma construção instrumentalizada que tenta marginalizar países como o Irã (de maioria xiita e um dos maiores rivais dos EUA), maculando-o como o responsável por ações terroristas orquestradas através de grupos extremistas.

Diante desses pontos, tentou-se nesse trabalho externar os diferentes equívocos do conceito de terrorismo, utilizado nos debates sociopolíticos e de segurança, que por vezes referenciam como terroristas organizações narcotraficantes que atuam em seus territórios, o que contraria até mesmo preceitos de relações internacionais (como no Brasil), que só reconhecem como terroristas as estruturas chanceladas pelo Conselho de Segurança da ONU como tais. (Tanno, 2003).Desse modo, buscou-se trazer esclarecimentos quanto ao uso conceitual e terminológico de terrorismo, e mesmo uma melhor percepção da aplicação e dos atores envolvidos nessa prática. Faz-se isso para atenuar as abordagens decoloniais prevalecentes, advindas dos cânones acadêmicos ocidentais, que tentam impor conceitos para justificar aquilo que ao olho das relações humanas diretas, entre semelhantes da mesma espécie, seria intragável. Foi assim com a escravidão, na construção de uma superioridade da branquitude; com a submissão da África e da Ásia durante o Imperialismo, em que o “fardo do homem branco” justificava a subjugação geopolítica de povos inteiros, que foram tolhidos de sua autodeterminação. (Inayatullah, 2004). E está sendo assim, entre outros fatos e modalidades, com as organizações políticas e sociais que ousam perturbar a ordem internacional ocidental: constrói-se um ambiente discriminatório e marginalizante para que fique subtendido que a lógica das “Cruzadas” democráticas, cristãs, liberais e militares, contra certos países do Oriente Médio, é justificada diante de um povo “anômalo” que seria genericamente considerado “extremista e fidelizados a uma crença que ousa querer se sobrepor as demais fés monoteístas”. (Barder, 2021)

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